23/12/2004

Quantas vezes pestanejamos num segundo?

Hoje acordei tarde, ou talvez me tenha deitado tarde, não sei bem, porquê o fim da noite parece-me já muito com o principio do dia. Sei que me atrasei para as mil e uma coisas que tinha para fazer (confesso que de proposito). E, assim, fiquei com muito menos para fazer e muito menos com que me preocupar.

Almocei ainda em casa, com a pressa habitual com que me sento a mesa. Corri para um autocarro qualquer que me levasse para um qualquer sitio para qualquer uma das coisas que ainda tinha tempo para fazer... O que não podia imaginar era que o meio de transporte para o que ia fazer se tornaria no sitio onde fiz a unica coisa util hoje.

Ainda na paragem, esperando, com a calma que me cabia, o autocarro que não sabia para onde ia. Impinei o nariz e nele segurei os meus oculos de sol, que tentavam a todo o custo esconder os olhos vermelhos e inchados que me assombram a cara já há alguns dias. Segurava a carteira numa mão, noutra o telemovel. Encostei-me ao muro de uma casa, plantada ali para mim. Olhei as horas uma unica vez.

13h40

Tenho a certeza que eram 13h40. O autocarro deveria estar a passar e, eu sei que já sabia isso. e num abrir e fechar de olhos, naquele pestanejar natural e incontrolavel apareceu a minha frente uma velha senhora. Cabelos compridos. Brancos. Olhos escuros. Fundos. Baixa. Exageradamente baixa. Nao sei dizer se gorda ou magra, e nao me lembro se usava oculos ou nao. Apareceu num pulinho e sorriu. Sorri tambem. Arranquei numa pressa incompreensivel os oculos que me tapavam os olhos. Sorri mais ainda.

-Podias-me dizer as horas?

podia... claro que podia. Corri a procurar o telemovel na carteira, tinha o na mão. Olhei as horas. 13h40... Mas isso eu já sabia

-13h40
-O autocarro deve estar a chegar, obrigada

realmente o autocarro devia estar a chegar. Alias, já devia ter chegado quando a primeira vez olhei o relogio. Mas o autocarro não vinha. Coloquei outra vez os oculos, agora porque o sol me magoava os olhos que ainda queriam dormir.
Pestanejei outra vez. E num pulinho, mais assustador que o outro, reapareceu a minha frente a velha senhora. Não sorria. Senti que tambem não sorri, se bem que fiz esforço para o fazer.

-Quando tinha a tua idade ajudava toda a gente, agora sei que tenho de ter mais pena de mim do que do mais pobre ser do mundo

Desta vez tenho a certeza que sorria e fiz um esforço enorme para responder, mas não respondi.

-Ajudava toda a gente ate chegar a um ponto em que precisava eu de ser ajudada e, como já me tinham avisado, não tinha ninguem para me ajudar. Muita gente se queixa sem razão. Estão todos mal. Tu também.

Já nao queria responder, nem sequer sorri.

-És nova. Tenho pena de ti. E já há muito tempo que não tenho pena de ninguem. Já há muito tempo que não ajudo ninguem. Mas os anjos veem se de longe. E todos os anjos merecem ajuda para curar as asas e voltar ao ceu.

Não queria falar, não queria sorrir, nem sequer queria ouvir.

então pegou-me na mão virou-a de palma para cima, ajeitou os oculos na cara (afinal sempre usava oculos). Cobriu a palma da minha mão com a sua outra mão. Olhou-me por detras dos oculos

-Escondes esses olhos como toda a tua doçura, quantas vezes olhas ao espelho para veres esses olhos? quantas vezes deixas alguem olha-los? Meu anjo, só precisas de estar sozinha um pouco. O teu remedio é de graça, da graças ao Senhor. Tira os oculos, deixa-te ao vento, só, livre, solta. Vive o tempo que eu já não tenho.
Bom Natal. O ano que vem é teu, eu já não tenho tempo, delego-te o prazer de o viveres por mim, de o aproveitares. Quando já não te interessar lembra-te que me interessa a mim.

Já não estava a ouvir, já não sabia sorrir e, as palavras que poderia dizer já não eram minhas. Fez-se silencio. pestanejei

O autocarro apareceu na curva (finalmente). Entrei. sentei-me. Ia guardar o telemovel, que ainda segurava na mão, na carteira, olhei antes para o relogio

13h40


Quantas vezes pestanejamos num segundo?

1 comentário:

  1. lindissimo.

    o melhor que li no teu blog, sem duvida.

    apoteose final, uma liçao de vida até ela chegar.

    no meu dia de natal contei mais de 5 minutos sem pestanejar...nunca gostei das noites em que os anjos não descem com medo das luzes todas nas ruas.

    *Mó

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