16/01/2005

Volta depressa (Carta 2)

Porto, 21 de Junho de 2004




Não dormi hoje. Desassossegada com o sossego do mundo. Sempre inventei um mundo cor-de-rosa a minha volta que sabia não existir. Sempre te fiz crer que achava tudo perfeito. Agora que tu não estas desassossega-me o perfeito. Pintava o mundo assim para ti. Sei que te apaziguava a alma. Sei que me procurarias todas as noites para te acalmar. Fiz me teu porto de abrigo. E agora perdeste a ancora, a bússola, o norte. Não sabes onde é a tua casa? Volta rápido.
Sei que te cativava a minha vida, a minha alegria, a minha juventude. E agora roubaste-me. Estou velha, cansada. Uma autentica peter pan no mundo mortal dos sem imaginação.

Encontro-te muitas vezes em sonhos, em esquinas, em caras, em corpos. Encontro-te em sabores que desconhecia, em cheiros, em texturas que não sabia existir. Vives em tudo o que toco, em tudo o que olho.
Poderei levar uma vida a perceber o teu silêncio. Ou então tudo se esclarecera quando um dia tiver o privilégio de te olhar outra vez.
Alguma vez te disse que os teus olhos falavam?
Alguma vez te disse que os teus olhos me substituíam o mar salgado onde cresci? Alguma vez te disse a vontade que tinha de mergulhar neles? De um verde tão puro, tão teu, tão fundo. Alguma vez te disse que todas as tuas palavras só tinham sentido quando os teus olhos as diziam? Ah, pois, os teus olhos falavam, cantavam, dançavam. Que saudades que tenho dos teus olhos.
Que saudades que tenho do revirar dos teus olhos. Quando te irritavas comigo. Quando te fartavas de esperar. Quando já não podias mais. Quando explodias de ódio e, de amor. Os teus olhos sempre falaram mais que tu. Quando as palavras não podiam ser ditas, porque os nossos corpos eram uno e nossas bocas estavam coladas, os teus olhos gritavam. Raramente os fechavas. Quando os fechavas era por desânimo, cansaço, desprezo. Quando os reviravas era por puro amor. Mesmo quando o fazias irritado comigo.
Faz-me falta o revirar dos teus olhos porra.

Volta depressa.

7 comentários:

  1. É mais uma carta lindissima. Tenho pena de não ser capaz de escrever algo assim a um homem... não por falta de jeito, mas apenas porque não consigo!

    ass:cereza

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  2. as palavras têm sentimentos. senão como explicaríamos nós esta carta?

    e não tenho dúvidas nenhumas de que esta pérola da lietratura portuguesa fará correr muita tinta: "faz-me falta o revirar dos teus olhos porra"

    e está tudo dito. nem mais. ponto. parágrafo.

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  3. É incrível o que as palavras podem dizer e podem expressar.
    É incrível o que olhar de "alguém" nos pode fazer sentir... parece que estou a reviver momentos...
    Muito bonito Nita. Obrigado.

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  4. Lindo...uma carta maravilhosa, de um amor muito grande...Gostei do teu canto!
    Um mergulho? Com esse frio? Só se fosse com alguém escaldando!
    Jinhos

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  5. Acho mal esta "cena" de só se poder comentar se se estiver registado...

    Escrevo só para ficares a saber que gostei do que li, e da forma como sabes transmitir o que sentes.
    Mas tu não tens só 19 anos, pois não? :o)

    McGyver.

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  6. O ter saudades do revirar dos olhos é que é estranho...;-)

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  7. McGyver por acaso tenho (só) 19 anos... Mas é só por acaso... =)

    Beijinhos e volta sempre

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